Havíamos chegado ao lugar escolhido. Uma casinha humilde em meio ao verde, cercada por árvores atentas, cúmplices do sagrado. Longe do ruído nosso de cada dia e dos passos desconexos e alienados da cidade. Almas ansiosas por descortinarem os véus de si mesmas e que traziam expectativas e temores, receios e entrega.
Estava tudo pronto para a travessia. Um templo santificado por árvores, distante o bastante dos ouvidos curiosos e olhares intolerantes dos vizinhos que impregnavam o concreto. Pessoas amigas dispostas a saltar o abismo entre os mundos, mas, sobretudo amigas. A presença daquele ser tão tentador e assustador em cada átomo daquele liquido espesso e escuro, quase sangue, quase vinho.
Semanas, meses, talvez anos, preparando-nos para o encontro dos átomos, para a comunhão dos corpos sagrados. Sim, as árvores eram testemunhas. E esperávamos serenamente pelo manto da noite bordado de estrelas, meditando sob o colorido crepuscular daquele fim de dia. Os guardiões silentes nos observavam das árvores e aguardavam as crianças que decidiram saltar no abismo. Os pássaros agitados prenunciavam a noite e lembravam que para pular no espaço sem fim era necessário possuir asas e estar livre das correntes impostas pela sociedade escravocrata insaciável.
As árvores haviam cedido seus galhos para comungarem com o fogo naquele ato sagrado. Galho sobre galho preparamos aquela que seria farol e guardiã naquela noite de envultados. Aquela que aqueceria os corpos frios e que cobriria as almas estava pronta e anunciava o momento tão aguardado. Se havia a oportunidade de desistir daquilo que para muitos seria loucura, a hora era aquela, porém todos já haviam se entregado e em seus olhares podia-se ver suas almas a espiarem com ansiedade.
A noite cobria a mata e no céu a grande rainha de prata dava sinais de sua chegada. O fogo ardia crepitante e se apresentava como entidade: avisava cerimonialmente que a hora chegara. Desplanejadamente todos já estavam ao redor da fogueira, submersos no mais profundo de suas almas, dialogando com seus temores e anseios, compassados pelas batidas nervosas de corações que esperavam o mergulho no desconhecido mar incriado. O ego já tentava se agarrar à realidade, trazendo o medo na tentativa desesperada de voltar atrás naquela loucura. Mas estavam além... E não havia lugar para covardia naquelas almas sedentas por “realidade” de verdade.
Cada qual então preparou seu ser interno da forma que assim entendia, cada qual fazendo sua oração, fosse qual fosse o nome que davam à comunicação com suas centelhas sagradas, da maneira que sentiam, livres de qualquer corrente dogmática que quisesse enfileirar seus soldados para dar graças por algo balbuciando textos decorados, cada qual sabia exatamente como entrar em contato com seu “eu” sagrado. Em silencioso respeito, com a reverência necessária a esses momentos únicos, imersos em seus sacrários de carne, cada um foi recebendo em seu corpo o vinho feito do sangue da mata. A partir dali não haveria mais como voltar, a simbiose se dava e podia-se ver em cada face retorcida o gosto amargo do sangue da árvore. O sacrifício se dava e, por mais que o corpo recusasse a invasão amarga daquela seiva libertadora da alma, todos sabiam que a viagem se iniciava, embora ninguém soubesse o que encontrariam após aquele ato. E enquanto o temor utilizava os tambores de seus peitos para alarmar os “divinonautas” com seu ritmo agonizante, o desespero do desconhecido travava uma luta desenfreada com o desejo do se encontrar. Podia-se sentir aquele sangue vegetal se entrecruzando com o sangue de nossas veias, serpenteando por nossos corpos e tomando nossas mentes de um torpor desconcertante, fundindo homem e árvore sem pedir permissão e ignorando o ego que dizia não se agarrando nas bordas do aquário de nossas almas.
A esta altura a senhora da noite já se apresentava majestosamente em meio ao oceano negro salpicado de astros e mirar em seu espelho de prata era mais que hipnótico, era mirar nos olhos de uma mãe há muito esperada. E mirar suas estrelas era mais do que a inspiração de um contemplar era dar-se conta da magnificência do mar universal. Olhar para cada uma daquelas pessoas, para cada ente naquela mata era mais que confortante, bem mais que familiar, transcendendo os meros laços da carne. Invadia a cada instante um sentimento de “fazer parte”, fadando a individualidade a ser apenas um detalhe da condição humana.
E quando a bela e horrenda dama que corria como dínamo nas veias de nossas almas decidiu por levar-nos ao encontro do imensurável, o ego debatendo-se em desespero sádico, usando de todas as suas forças para agarrar-se ao humano, eis que um turbilhão caótico lançou-nos no espaço. A agonia do ego ao ver-se dissolvido, perdendo-se de si mesmo na imensidão do incriado, trazia o melhor sentido de completude com o Tudo-Nada, a real comunhão com o sagrado. Nossos corpos esquecidos, gelados, guardados apenas guardião do fogo e pelas árvores eram apenas detalhes, casas abandonadas por seus usuários. Em uma epifania fantástica podia-se sentir o quedar constante no espaço e o medo do abismo devorador tornou-se o conforto da criança por útero amparada. Nada explica o amor daquela mãe, o conforto de seus braços, a beleza de seus traços. Nada se explica nessa viagem: apenas o sentir se basta.
E ao voltar deste mundo tão extraordinariamente real, dando-se conta da ilusória passagem do que chamamos em vida de realidade, vemos o quão especial pode ser tudo se mirarmos com a mesma alma que se derreteu nos braços daquela mãe absurda e eternizada. O valor dado a cada pequena alma, a cada sagrado átomo, por saber ser de tudo parte. A alegria de poder compartilhar com aquelas pessoas, antes pessoas amadas, agora fragmentos de sua alma, bem mais que irmãos, espelhos do espírito, ancestrais companheiros que trazem consigo a familiaridade de tempos incontáveis, repletos do pó das galáxias das quais todos fomos e somos parte.
Ao despedir-se de nossas carnes, aquele ser que nos deu asas para transpor as barreiras do espaço, deixou mais do que lembranças extraordinárias de um país das fadas, instalou-se em nossas divindades em uma simbiose além-carne, transmutando-nos em seres conscientes da imensidão do infinito incriado.